quinta-feira, 14 de junho de 2012

A D.,



     Gosto das embarcações porque não deixam rastros. As marcas dos caminhos que trilham são apagadas no momento em que são traçadas, de uma forma que não nos permite voltar aos lugares que não paramos por desatenção.
     Minha vontade é descaminhar e me afogar nessa incerteza de dar passos, todavia me perco como um bom contrabandista. Estradas que criei para os meus pés. As bifurcações continuam aparecendo sem placas, sem avisos, diante dos meus olhos que não dão conta.


Que espécie de acordos tens travado com a vida?
O que buscas?
Por onde andas?

     Por aqui Junho resolveu deflagrar a lei da chuva, que, se de um lado derruba casas, doutro faz brilhar o asfalto. Cultivo uma nada escondida preferência pelo cinza que deixa as pessoas elegantes e úmidas. Gosto tanto que chego a ser inocente: Por exemplo, me é impensável a ideia de pessoas que, no inverno, apelem à traição, licitação de emergência da alma. Me corrija se estiver errado. A culpa sim, medida provisória do amor, veste bem a estação dos lençóis divididos.
     No mais, teimo em descobrir coisas que não quero, a cruz que nos é comum.
Agora vou. É tarde. Andar é questão de equilíbrio, amigo, o que faz dos corredores estreitos lugares agradáveis. Paredes que se espremem para oferecer apoio ao corpo, que possui a estranha necessidade de revisitar a cozinha, na qual as panelas ainda tentam, desesperadas, melhorar as coisas.

Beijos amargos de café,

J.

terça-feira, 27 de março de 2012

A D.,

Sustei a última carta.
Hoje estou cheio de reticências...


   Há sempre um dia de chuva pra molhar os telhados mais frágeis. Se ao menos chovesse agora, seria mais justo.
   Quase que não me seguro, mas me contive. Minha vontade era te falar de tantas coisas que senti preguiça, daquelas que só eu tenho e tu sabes bem. Achei melhor, no entanto. Os silêncios e os ombros podem ser chamados de casa quando convém. Os cangotes adoram lágrimas, percebeste?
   Faz tempo que não te vejo, por volta de um ano ou mais. É o cinema, meu caro, é o cinema e essa safadeza toda que estraga as pessoas.
   Nem os sustos interrompem os soluços dessa cidade. Aqui não tem nascentes e o que vem de dentro volta, refluxos fedorentos de um lugar aonde só as sombras e os reflexos do delírio de chegar ao céu deságuam no mar. A gente toda tem raiva de tudo e eu tenho ódio de todos que tem dela. Sempre fui injusto. Sinto tristeza em saber que agora o circo marcha e a lona é um céu de pimenta sem trapézio. Me escondo, sou covarde e cansado.
   Perdi o controle das coisas que antes estavam em meu alcance, movimentava todos os universos ao meu redor com maestria de menino e ria quando não conseguia executar com perfeição as tarefas mais difíceis. A platéia, que de tanto bater palma cansou, era um caos porque todos queriam estar lá. Temo ter perdido a intimidade dos que se abraçam, não sei se as coisas estão mais distantes ou se eu estou mais confuso.

De um lugar seguro,
J.

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Para J.

Voltasse.Te esperei para dizer viagem.

Das viagens :

O senhor Gonçalo inquilino , livreiro monocromático, amante dos senhores das senhoras empacotadas.Com olhar fixo, produz aforismos delirantes.
Olhos de rios distantes.Sempre a procurar as nascentes.
Por que procurar as nascentes
se os rios sempre fogem delas?
Rio quer ser mar
e os que morrem no caminho são os  mais humanos.
Senhor Gonçalo afirma.

Gonçalo me vistou no último dia.
Só aqueles que nunca desembrulham a bagagem podem viajar.


Da reclusão:

Calmaroso é o tempo que não podemos escolher.

Os silêncios dão voltas nas paredes e sempre acabam concentrados entre o peito e o umbigo.
Dizem que nossas barbas já não escondem nada.
                                                                                 dos nossos olhos podem ver um raso sem fim.

Entre as gravatas marciais e protestos florais,
Andar pela beirada da história é o que nos resta.

Libações por aqui são esparsas.
Uma centena de dedos em média em uma re-união.
Sem óleos , nem pequenas promessas
que sempre ficam escondidas em um outro lugar.

Beijos amargos de café.D.


terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

A D.,

    Da Rua Santo Elias eu sentia o cheiro que vinha da cozinha de um restaurante que nem sei se ainda sobrevive. Escondido entre a espada de São Jorge e a papoula que não dava flores. Em cima da cadeira do meu avô, na ponta dos pés, observava os tetos das construções mais baixas e de telhas vagabundas. Eu sabia da onde vinha o cheiro porque em cima da cozinha existiam duas bolas metálicas que giravam e faziam o ar circular ali dentro. As vezes, em dias de sorte, ele vem e entra pelo meu nariz de fumante, como se os anos não fossem maldosos e evitassem de engolir as lembranças da casa velha. Fragmentar sentimentos é ignorar o fim de tudo, é relevar a sucessão das coisas. É voltar.
 
    Ando em outro passo. O tédio é o vilão, meu caro. O tédio. Cuidado com a repetição, do contrário cairás na sina     dos paulistanos, automatizaram a rotina e hoje andam velozes, olhando para as pontas dos sapatos. Sabes que nessa época há dias sem sombras em São Paulo?! O sol de lá é cansado. É muita coisa pra dar conta.

    Nesses ultimos quinze dias ando experimentando cada canto da minha casa sem “prazerar” nenhum. Tomo banho e me lavo. Piso em ovos e fujo dos alarmes. Tomo outro banho e me lavo. E me lavo e me lavo e me lavo e me lavo. E me lavo.

Beijos amargos de café,
J.